sexta-feira, 21 de outubro de 2016

À Palo Seco

Tragando seu último cigarro, olhou sua última garrafa e se viu no espelho por uma última vez.

Contou centavos, botou suas meias, cueca, bermuda, sapatos, blusa e sorriso. Nessa ordem. Certificou-se que não esquecia nada.

Colocou o porta-documentos no bolso, o celular mudo em outro. Tateou novamente na esperança de mais um cigarro ser gerado espontaneamente num ato de benevolência de algum anjo ou demônio. Ou de sua própria memória.

Na casa deixou apenas papéis de projetos inacabados e promessas não cumpridas. Nem um mapa, nem um bilhete, nem uma fibra de tecido ou moral.

Já avançava da meia-noite quando visualizou o seu destino. Aproximou-se dele e tateou a parede fria. Com um olhar estupefato acompanhou a altura até onde seu pescoço permitia. Vai servir.

Tinha sede, mas beber era um luxo que ele não podia atender. Água, uísque. Saliva já não tinha e não havia onde buscar. Lágrimas talvez servissem não fossem salgadas - a maldição dos marinheiros em calmarias.

Tomando o leme de sua vida, rumou calmamente pelos lances de escada. No fundo da sua cabeça cantarolava alguma música que não lembrava bem e que provavelmente teria vergonha de cantar em voz alta. Subia.

Estava cansado, mas sabia que a linha de chegada estava próxima. Rompendo uma fita abriu a última porta do último andar e olhou à sua volta. Admirava o mundo que estava prestes a se tornar melhor e tentava registrar em sua mente qualquer coisa que compusesse um bom filme.

O mesmo, porém, foi digno de Lars Von Trier.

Subiu no parapeito. A primeira vez em muitos anos que teve coragem. Olhou suas mãos, abriu seus braços.

E saltou para o céu de Ícaro, mas foi tragado pelo de Galileu.