sábado, 25 de janeiro de 2014

Mulher Certa

- Vou te falar...
 
O senhor colocou seu copo de bourbon sobre a bancada do bar. Devia ser umas 17h - muito cedo pra um bar da Lapa estar aberto, especialmente alguém estar tomando bourbon dentro dele. Mais ainda para estar dando conselhos.
 
- Eu sou um dos últimos pracinhas da FEB. O Brasil foi pra Segunda Guerra, sabia? Mas pouco se importam com a gente.
 
Ameaçou beber mais um gole, mas abortou o movimento quando viu que havia capturado a atenção daquele jovem.
 
- Pois é. Ninguém da nada por esse velho.
 
E bebeu. Deixou o destilado tocar sua língua e descer goela a dentro. Fez um gemido de satisfação quando sentiu o gosto forte na boca.
 
- Mas a pior coisa que pode acontecer a um homem não está num campo de batalha. Pelo menos não em um literal.
 
O jovem virou-se para o homem. Bebia cerveja. Seus trajes cheiravam a cigarro, seus olhos marejados e laureados por olheiras. Batia de leve na bancada com seu cartão - provavelmente nervoso em relação ao limite.
 
- É, garoto. Quer saber qual a pior coisa que pode acontecer a um homem?
 
Seu interlocutor o fitou fixamente, como que claramente interessado na resposta. Bebeu um gole de sua cerveja e permaneceu em silêncio esperando o velho prosseguir.
 
- Achar a mulher certa. Porque as erradas nos divertem e tão somente. Quando nos machucam as mandamos às favas e seguimos nossas vidas. Se as machucamos, paciência, elas nos enfiam o pé na bunda e seguem a vida delas. Mas a mulher certa...
 
Tomou mais um gole generoso, como que interessado em provocar seu ouvinte.
 
- A mulher certa não. A gente se prende a ela. A gente sofre, mas não larga. Esquece esse papo de que a mulher certa é a que nos faz mais feliz. Porra nenhuma, garoto. A mulher certa é aquela que queremos ver amanhã, não importa a quantos amanhãs a vemos. É aquela que a gente não consegue largar mesmo se ficar dez semanas sem trepar. É aquela que a gente vê se depilando, com mau hálito matinal, caganeira e ainda assim achamos lindas.
 
Olhou pro copo quase vazio por uns segundos, enquanto seus próprios olhos marejavam numa sincronia perfeita com os do jovem.
 
- A mulher certa faz com que sejamos idiotas. As erradas nos fazem de estúpido, as certas de idiotas. Tem diferença, vai por mim. A mulher certa, garoto, é a que faz com que queiramos ser o homem certo. Nos bota naquela rotina casa-trabalho-casa e quando percebemos lá se foram 30 anos sem que a gente se incomode.
 
Esboçou um sorriso - por certo um pensamento lhe ocorreu. Focou-se novamente no discurso e prosseguiu:
 
- Ela emprenha, engorda, fica cheia de gases e a gente quer grudar a orelha naquela barriga de balão. Ela nos inferniza com obrigações domésticas, mas nos faz reconhecer que a casa realmente fica mais agradável depois daquele esforço. Nos faz querer que nos fodamos sendo úteis pra tudo a todo tempo. Não nos dá o luxo de querermos ficar encostados.
 
Levantou e pegou a comanda do rapaz, colocou sua mão pesada sobre o ombro do mesmo e sentenciou:
 
- Para de se foder pela mulher errada, garoto. Manda ela à merda. Se ela fosse a mulher certa você não estava aqui me ouvindo, estaria fazendo de tudo pra terminar a noite na cama com ela.
 
E encaminhou-se para o caixa onde pagou a conta e sumiu em direção a vida de outro jovem.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Houve Um Tempo

Não há muito houve um tempo em que meus passos eram inexoráveis, minha cabeça erguia-se orgulhosa em meio à multidão de olhares cabisbaixos que me cercavam, todo o planeta e tudo que nele habita estava à mercê da minha vontade, ao alcance das minhas mãos. Eu era uma força da natureza, imprevisível e incontestável, não havia jaula que pudesse me conter - eu inspirava curiosidade, medo e admiração.
 
Houve um tempo em que tamanho era meu amor por mim que todas as criaturas que me cercavam minguavam à sombra da minha existência. Tão alto era meu pedestal que eu não ouvia choros, cumprimentos, maldições e apelos. Era intocável, inflexível, uma estátua de mármore articulada, resistente ao tempo e ao desmoronamento das civilizações.
 
Os mais antigos hão de se lembrar que meu nome era citado com devoção e pavor. Eu era um bastião de virtudes e a palmatória da humanidade - percorria todos os cantos do mundo buscando aplacar minha infinita sede por justiça, pela minha justiça, tenha sido ela clamada por injustiçados ou não. Não havia ponto distante nem terra inalcançável, todo ser pensante sabia que estaria submisso às minhas determinações - meu desejo era soberano.
 
Crianças ensaiavam coros e cenas para louvar meus feitos. Livros eram escritos sobre as minhas conquistas. Filas formavam-se nas ruas para me receber sempre que minha personalíssima honra optava por manifestar-se em alguma coordenada do globo. Multidões aglomeravam-se buscando um olhar, uma palavra, um momento de inspiração ao meu lado. Esse era outro dom que eu tinha: inspirar, motivar. Musas cercavam meu leito para terem sobre o que inspirar seus artistas.
 
Agora meus joelhos doem. Minhas mãos doem. Minhas costas doem. Minha memória começa a perder-se no tempo, meu nome agora é sussurrado em pragas, cidadãos cospem nas estradas que meus pés tocam. Minhas estátuas foram postas abaixo, minhas pinturas queimadas, meus hinos esquecidos.
 
Não sou mais nada agora. Em breve serei somente mais um dentre tantos outros que deixaram suas impressões nesse planeta. O chão quente queima meus joelhos, essas cordas me esmagam os pulsos, minhas costas são laceradas pela chibata. Meu pescoço, porém, continua confortável enquanto espera o momento inadiável em que a guilhotina me fará uma última saudação.