quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Houve Um Tempo

Não há muito houve um tempo em que meus passos eram inexoráveis, minha cabeça erguia-se orgulhosa em meio à multidão de olhares cabisbaixos que me cercavam, todo o planeta e tudo que nele habita estava à mercê da minha vontade, ao alcance das minhas mãos. Eu era uma força da natureza, imprevisível e incontestável, não havia jaula que pudesse me conter - eu inspirava curiosidade, medo e admiração.
 
Houve um tempo em que tamanho era meu amor por mim que todas as criaturas que me cercavam minguavam à sombra da minha existência. Tão alto era meu pedestal que eu não ouvia choros, cumprimentos, maldições e apelos. Era intocável, inflexível, uma estátua de mármore articulada, resistente ao tempo e ao desmoronamento das civilizações.
 
Os mais antigos hão de se lembrar que meu nome era citado com devoção e pavor. Eu era um bastião de virtudes e a palmatória da humanidade - percorria todos os cantos do mundo buscando aplacar minha infinita sede por justiça, pela minha justiça, tenha sido ela clamada por injustiçados ou não. Não havia ponto distante nem terra inalcançável, todo ser pensante sabia que estaria submisso às minhas determinações - meu desejo era soberano.
 
Crianças ensaiavam coros e cenas para louvar meus feitos. Livros eram escritos sobre as minhas conquistas. Filas formavam-se nas ruas para me receber sempre que minha personalíssima honra optava por manifestar-se em alguma coordenada do globo. Multidões aglomeravam-se buscando um olhar, uma palavra, um momento de inspiração ao meu lado. Esse era outro dom que eu tinha: inspirar, motivar. Musas cercavam meu leito para terem sobre o que inspirar seus artistas.
 
Agora meus joelhos doem. Minhas mãos doem. Minhas costas doem. Minha memória começa a perder-se no tempo, meu nome agora é sussurrado em pragas, cidadãos cospem nas estradas que meus pés tocam. Minhas estátuas foram postas abaixo, minhas pinturas queimadas, meus hinos esquecidos.
 
Não sou mais nada agora. Em breve serei somente mais um dentre tantos outros que deixaram suas impressões nesse planeta. O chão quente queima meus joelhos, essas cordas me esmagam os pulsos, minhas costas são laceradas pela chibata. Meu pescoço, porém, continua confortável enquanto espera o momento inadiável em que a guilhotina me fará uma última saudação.

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