sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A Caixa

Pacientemente esperei por esse momento. Por mais do que um Natal, inclusive. Tive um ano de bom comportamento, vivendo a minha vida de forma justa, sem sequer imaginar o que me seria dado na Noite Feliz.

Os dias passaram normais, serenos. Em cada um deles aprendi uma coisa nova, tive a chance de ser menos menino e mais homem. Quando chegou a tão esperada noite de Natal vi que o menino havia sido substituído, não morto, pelo adulto que se formava. Ele também, no entanto, estava ansioso para saber o que o aguardava à sombra do pinheiro de plástico montando na sua sala de estar.

Mesmo com a chegada de tão esperada data, confesso, não me afobei. Tudo bem, sendo sincero, apressei um pouco os meus passos, mas vi que de nada adiantava: Aquele presente, o especial, o qual eu guardaria para sempre comigo, só me seria entregue no momento certo. As horas fluíram com a leveza de um córrego e enfim chegou o instante em que eu poderia tocá-lo e descobrir o que a vida havia me reservado.

Tomei o pacote de papel alegre e laço bem feito nas mãos. Coloquei-o no colo e pacientemente abri. Tive todo o cuidado para não rasgar o invólucro, tamanho prezar que eu tinha por aquele presente. Com gestos leves procurei as brechas que me permitiriam usufruir daquilo que me foi entregue.

Qual não foi minha surpresa ao deparar-me com uma caixa. Era de madeira, em tom claro, bem trabalhada. Possuía detalhes dourados, mas era ainda assim muito simples apesar de extraordinariamente bela. Já tive essa caixa nas mãos, lembro bem, e como a vida, donatária do presente, sabia que era exatamente aquilo que eu gostaria de ter novamente? Foi preciso tempo e vivência para possuir uma vez mais o que jamais me pertenceu de fato.

Admirei aquela caixa e me perguntei o que teria dentro dela. Havia uma grande fechadura em metal frio e nenhuma chave veio junto ao pacote (acredite, eu tive o cuidado de verificar). Não tinha como saber quais segredos eram por ela guardados, mas a mesma soltava pistas de que portava tudo aquilo que eu queria. Pistas soltas na forma de um cheiro agradável, de uma melodia suave acompanhada do tilintar de zil coisas que me fascinam.

Tudo o que eu quero está lá dentro, eu sei. A caixa é paradoxal: ao mesmo tempo em que se demonstra extremamente resistente é absurdamente frágil. Um movimento mais brusco poderia quebra-la e arruinar seu conteúdo para sempre.

Tendo como lição a longa espera que eu tive para ter ao meu lado e ao alcance das minhas mãos tão misteriosa caixa, eu optei por guarda-la e esperar o momento em que a chave me será entregue. Enquanto isso, limito-me a eventualmente olhar para ela com ar de admiração, sentir o perfume exalado e imaginar o quanto será bom o dia em que a mesma for aberta para mim.

Eventualmente ouço cliques vindos da pesada fechadura fria, capaz de arrepiar-me com um simples toque. Aguardo pacientemente o instante em que um estalo final será ouvido e eu poderei não só tocar no que a caixa guarda como também depositar um pouco de mim lá dentro...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Bons Vícios

Li na biografia de Eric Clapton a citação de que o mesmo, em dado ponto da sua vida, só não se suicidara por temer sentir falta de beber. Sim, seu vício no álcool era tamanho que foi preciso superar a vontade de morrer para atender aos seus caprichos etílicos. Desde que obtive essa informação cheguei à conclusão de que um homem deve, sim, ter seus vícios. Claro, ue um homem deve, sim, ter seus var a vontade de morrer para atender aos seus caprichos et estes não precisam (e não devem) ser destrutivos, mas tornei-me fiel seguidor da ideia de que ter algo material tão enraizado em nossas vidas é extremamente positivo. Como não sou fã de hipocrisias eu mesmo descobri meu vício: o futebol.

Sim, eu sou daqueles imbecis que gostam de assistir à série B do Campeonato Belga, que acordam de madrugada para acompanhar jogos da UEFA, que lêem a parte esportiva do jornal (que é praticamente uma Caras para homens) e discutem calorosamente a lei da vantagem, o impedimento duvidoso e tece comentários sobre a mãe do árbitro. Sinto muito, mulheres, mas sou daqueles caras os quais, aos domingos e quartas-feiras, sentam-se religiosamente em frente à TV, seja em casa ou num bar, bebe uma cerveja e berra como se pudesse ser ouvido pelo técnico ou pelos jogadores.

Todavia, não só de “ogrisse” vive o futebol. Certa feita me descrevi como um homem frio, mas que tende a emocionar-se com sutilezas da vida e o esporte mais popular do mundo é a maior fonte que já vi desses momentos sutis, comumente chamados de fair play (jogo limpo, jogo justo). Gosto de ver o ser humano conseguindo separar o adversário do inimigo, o lutar do guerrear, enfim, demonstrar humanidade ainda que no ápice da testosterona e no calor de uma partida intensa. Virtudes como o companheirismo, a tolerância e o respeito mútuo sendo exercidas ferrenhamente dentro de campo levam meus olhos às lágrimas e é justamente sobre um caso desses que passo a relatar...

Como tarado por futebol estava assistindo a uma partida que, se for analisar pela lógica, não tinha nada a ver comigo: Fluminense x Grêmio. Sou flamenguista, os jogos que me interessam de fato são os referentes à base da tabela, não ao topo. Mas como razão e paixão não se comunicam com muita facilidade eu optei por assistir ao jogo. Felizmente.

Pois bem, quem acompanha futebol sabe que o Tricolor Carioca tem um jogador (que apesar das críticas a ele considero bom) chamado Washington e que o mesmo está a nove partidas sem fazer gol, o que deve ser uma pressão fudida, haja vista que ele é atacante e é basicamente isso que um atacante faz: coloca a bola dentro da rede. Seria tipo um goleiro ficar por nove jogos sem fazer uma defesa, frustração total. Eis o cenário: segundo tempo, Washington, brasileiro, recebe a bola e chuta em direção ao gol. Por questões de centímetros a mesma iria para a linha de fundo mas Conca, argentino, corre em direção à meta adversária e finaliza. Gol do Fluminense. O público vai ao delírio, aplaudindo Conca que faz um sinal de negativo com a mão e aponta Washington, que é ovacionado pelos demais membros da equipe.

Naquele momento não haviam rivalidades. Não existia guerra de orgulho. Não existia Brasil x Argentina. Eram duas pessoas que lutavam por um objetivo comum. Assim como não havia flamenguista x tricolor, pois comemorei o gol do Fluminense, não pelo time em si, mas pelo ato do meia-atacante argentino. Fiquei pensando que era realmente uma pena Israel e Palestina não resolverem suas diferenças em campo, assim como chechenos e russos, tutsis e hutus e etc... como o mundo seria melhor se todos os problemas fossem resolvidos entre quatro linhas, dentro de noventa minutos, com clima de amistoso e tensão de final.

Ainda tenho fé de que um dia a humanidade trocará o fuzil pelas chuteiras e as trincheiras pelo gramado. Esperança de que o ser humano terá a capacidade de aplaudir um adversário e reconhecer uma vitória justa. Nesse dia provavelmente a palavra inimigo será banida do vocabulário dos homens e só será usado o termo adversário. Todavia, enquanto esse dia não chega, limito-me a celebrar os pequenos momentos de pureza que o futebol é capaz de me proporcionar. E vivo desse vício com a expectativa de passar tempo o bastante na Terra para ver meu sonho se tornar realidade.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Aposentadoria de Malandro

É sabido que malandro tem vez que ama
Buscando deixar sua mulher risonha
Não passa nem pela porta da zona

E dizem que perde grana pra otário
Malandro quando está apaixonado
Fica burro, anda desengonçado

Não bebe e nem fuma ao baixar no terreiro
Malandro encantado, moça, não tem jeito
Acha que tudo foi por Deus bem feito

Malandro pensando em um só rabo de saia
Não erra, não pondera, não comete falha
Pra sua mulher não ir embora de casa

Malandro quando está compromissado
Deixa no bar seus dados viciados
Sua navalha e seu carteado

Pra envelhecer, moça, ao teu lado
Malandro até se imagina casado
Com filho e sempre sossegado

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tema: A Menina da Primeira Fila

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, mas só porque ela vai ser capaz de reconhecer que este é um texto construído como uma poesia em prosa. E só o faço por outros zil motivos, torpes e toscos, alguns dos quais passo a transcrever abaixo.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira por ela volta e meia aparecer com uma trança embutida no meio do seu cabelo dourado, a qual me faz imaginar durante quase um tempo inteiro de aula (aquele no qual, aparentemente sem razão, eu fiquei calado com aquele ar de quem olha mas não vê) quanto tempo demorou para deixar o cabelo daquela forma. E fico, também, pensando em formas de elogiar sem parecer que estou dando em cima, até porque para isso já bastam os demais homens do mundo, que parecem todos interessados nela, mas poucos aproveitam a oportunidade de verdadeiramente conhecê-la ou adivinhar seus traços como eu, mero observador e poeta, tento fazer agora.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, a qual guarda um lugar para a amiga, mas não faz dessa amizade uma ilha. A menina que tem sorriso fácil e uma gargalhada que só pode ter sido aprendida em Pasárgada, da tal mulher que o poeta quer na cama que ele escolher. Componho versos toscos e corridos e quase sem fôlego digo que fiquei realmente impressionado com aquela aula em especial na qual descobri que ela era uma das poucas que cantava as letras de Chico Buarque sem errar (quase) nada.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, só por achar que tem, como eu, poesia na alma e por considerar um desperdício sua falta de vontade em fazer disso sua profissão, carreira, vida. E só falo porque tenho medo de ver tantas letras bem desenhadas e cuidadosamente traçadas, em busca da exposição mais perfeita de uma ideia, sendo usadas no futuro para algo tão banal quanto a legislação vigente na Pátria em que vivo, a qual só não é mais insuportável por causa de pessoas como ela.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, porque acho que ela fica bem ali sentada e porque de vez em quando ela olha pra trás e quase observa o rapaz que senta lá pela terceira ou quarta fileiras, ora em uma, ora em outra, e já se pegou imaginando como ela ficaria com uma fita no cabelo, ou uma flor, ou mesmo uma tiara feita de prata e brilhantes, descendo de uma carruagem de abóbora e depois correndo esbaforida para, propositalmente, deixar um sapato de cristal para trás.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, do lado esquerdo da classe, e olha vividamente para o quadro branco, aprendendo tudo o que pode por achar que sua tarefa de passar no vestibular seria capaz de fazer Hércules, Aquiles e Odisseu parecerem crianças mimadas as quais não sabem o verdadeiro significado da palavra desafio.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, porque sei que ela será capaz de enxergar que o início de cada verso desse texto forma um paralelismo sintático e isso a fará feliz por perceber que todos seus esforços valerão a pena na hora de encarar aquelas malditas questões infinitas as quais tentam enfeiar essa língua tão bela que temos, cuja qual deveria servir apenas para tecer elogios e descrever paisagens bucólicas, como tentaram fazer os árcades.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira, só porque sempre que vejo alguma outra menina, a qual provavelmente não senta na primeira fileira de lugar algum, se descrever como “a maçã no topo da árvore” eu lembro dela e ponho-me a rir dos tais outros homens do mundo os quais tentam alcançá-la e mesmo que a alcancem não se mostram capazes de segurá-la com firmeza. E tal qual Newton limito-me a sentar à sombra dessa macieira chamada Acaso e sigo com meus estudos e pensamentos e filosofias e palavras tortas por linhas ainda mais tortas.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira pelo simples motivo dela ter me inspirado a escrever um texto longo e o qual eu nem vou revisar com medo de mudar alguma coisa e desconstruir todo o sentido que, querendo ou não, coloquei por trás de cada palavra. Escrevo também porque talvez um dia eu vá escrever tão bem quanto Clarice Lispector e alguma frase escrita por mim num raro surto de genialidade pode vir a ser utilizada quando ela for se descrever numa página de relacionamentos qualquer.

Escrevo para a menina que senta na primeira fileira não por querer tê-la para mim, mas por achar que ela merece ser querida, virtude tão rara de ser encontrada por aí. Porque sei que ela vai implicar com meu cigarro e a partir daí eu poderei puxar um assunto qualquer sobre trivialidades naquele espaço de tempo infinito em que um ônibus demora pra chegar...

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sujeito Paciente

O Zé é acordado pelo silvo violento do apito do guarda na rua movimentada em que foi enfiado pela vida. Seu incômodo com o alarido puxou o lençol e o encaminhou para o chuveiro.

A água gelada acabou o serviço de despertá-lo, já deixando Zé no estado de alerta-inerte cotidiano. A fome surrou seu estômago e obrigou o rapaz a sair para buscar o pão de cada dia, o qual não lhe seria dado.

Foi atraído até a padaria pelo cheiro de café fresco; os centavos em seu bolso (ele não precisa de carteira) pagavam a conta enquanto o líquido quente mentia para o corpo de Zé, dando a crença de que fora alimentado.

O bolso, agora vazio, lembra Zé de que está na hora do trabalho, e os carnês atrasados o conduzem à labuta. Pedras são erguidas, pedras postas abaixo. O peso do dia a dia faz do sertanejo um cabra forte e dolorido demais para pensar.

A exaustão há três horas o mandava encerrar o expediente, mas a voz do patrão falava mais alto. Ela, a bem da verdade, mal era ouvida: só a necessidade de atender ao capricho casamenteiro da Preta é que dava forças pro trabalho não parar.

Amanhã é dia santo, de descanso. Zé será acordado por sua fé em Nossa Senhora para ser orientado num sermão sobre pecados inacessíveis. Talvez a rodada do Brasileirão seja assistida.

Só não esquece, Zé, que amanhã não tem jeito: você vota.

domingo, 22 de agosto de 2010

É Só Um Desabafo, Juro.

E novamente vejo-me fitando o horizonte, tão compenetrado e envolvido que até parece que teus olhos nele surgirão a qualquer momento dando a inspiração necessária para vencer qualquer adversidade e ser absolutamente tudo a que eu aspire nessa vida. Ou simplesmente escrever um bom texto.

Uma vez mais eu sinto minhas asas, e ventos ascedentes, e nuvens frias, e o calor do sol. Todas as condições perfeitas para te pegar pela mão e voar alto o bastante, a ponto de fazer o planeta desaparecer sob nossos pés e termos, enfim, a privacidade pela qual procuramos por toda noite.

De novo sinto aquela brasa no peito que se espalha por todo meu corpo enquanto tento eclipsar o verde da tua íris com o negro da pupila. Fazer-te suar em pleno polo, abraçar com a certeza de quem quer estar ali, presente, eternamente ainda que por um breve instante.

Outra vez sinto-me gigante diante de tudo que ousa se posicionar contra o meu querer, mas não mais marcho com prepotência, e sim com a convicção de que minhas escolhas são as melhores para mim. Não mais caminho na tua direção, apenas certifico-me de que a trilha que percorro seja agradável o bastante para que queiras dividí-la comigo.

Agora fecha os olhos, morena. Viver é bom, outro poeta já te disse. Estamos aqui só para provar isso ao resto do mundo. Deixe que eu te acolha e proteja; como se não soubesses que o motivo da existência do meu braço e do meu abraço é dar-te toda a segurança do mundo - fazer apenas com que sintas a mesma grandeza que inspiras em mim, agora, mesmo na tua ausência, enquanto fito o horizonte esperando teus olhos raiarem com o sol.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Meu-Lírico

Olha só, precisamos conversar. Eu te dei toda a liberdade do mundo para se expressar da forma que você quisesse. Dei-te a opção de ser homem, mulher, bicho, bicha, planta ou criança e você parece que está abusando dessa minha flexibilização literária. Francamente, parece até que você quer me substituir.

Não me leve a mal, eu te entendo perfeitamente. Passamos anos em silêncio um com o outro, acumularam-se palavras, as quais você tenta desesperadamente contar a mim para que sejam comentadas, mas talvez seja melhor pegar leve com essa proximidade. Já rola aquele papo de que escrever é coisa de viado; tendo você grudado a mim fica difícil o povo não comentar.

Calma, respira. Eu sei que te enfurece, a mim também. Temos aquele quê Keynesiano (também odeio aliterações) de fazer as coisas pela povo, é triste quando não reconhecem o esforço de cada um de nós. Ficam por aí dizendo que eu sou você, que você sou eu. Puta coisa mais sertaneja.

Discordo, calar não é a opção. Você sabe tão bem quanto eu que é necessário falar o que falamos, apontar o que apontamos, criticar o que criticamos (também acho paralelismo sintático uma construção pobre), enfim, por a boca no mundo para prosarmos seriamente a respeito das asneiras as quais vemos por aí.

Fico feliz por termos conversado. Desculpa se te ofendi ou magoei, mas achei que seria melhor resolver logo isso do que deixar acumular. A propósito, dessa vez quem vai falar serei eu e somente eu.

...ah, pro inferno com o que vão comentar. Me ajuda a escrever uma crônica?

sábado, 24 de julho de 2010

O Dia Seguinte

Ele abriu seus olhos, tateou o despertador que berrava ao lado da cama e num toque sonolento transformou a campainha irritante numa bela canção para despertá-lo – pensou que deveria programar o rádio para já acordá-lo com belas canções, mas novamente ele iria adiar essa função: Amanhã eu coloco isso direito...

Fitou o teto por alguns minutos num misto de ansiedade e medo, não sabia se os eventos da noite anterior teriam ocorrido antes ou durante o sono; a forma como todos os toques e palavras e sorrisos se encaixavam perfeitamente com suas aspirações e necessidades justificavam o receio de que aquilo tudo não tivesse passado de um delírio onírico.

Após algum tempo sorrindo como nos seus dezesseis anos, juntou coragem o bastante para levantar-se da cama e procurar em sua carteira aquilo que determinaria se a experiência a qual o fascinava havia sido vivenciada ou imaginada, após folhear alguns documentos inúteis encontrou o guardanapo com o nome e o telefone d’Ela. Abriu um largo sorriso e consultou o relógio: Cedo demais para ligar.

Tentou exercer frieza e indiferença, sabia que a ansiedade e a precipitação poderiam colocar tudo a perder – especialmente depois de um certo trecho da conversa que tivera com Ela na noite anterior (quando começaram a vasculhar suas almas em buscas de infinitas afinidades comuns). Buscou canalizar sua atenção para todas as inúmeras distrações que costumavam fazer o dia correr mais rápido, porém foi em vão. A cada minuto que não passava o frio na barriga parecia aumentar, ficava revivendo cenas daquela noite que, embora parecesse eterna, infelizmente não foi.

Imaginou como Ela estaria naquele momento, mas logo afastou esses pensamentos da cabeça por medo de toda aquela euforia não ser recíproca. Mas depois daquela noite, teria como não ser? Uma vez mais ocupou sua mente. Os entretenimentos cotidianos não adiantavam, lamentou ter sido acordado tão cedo – parecia que seu despertador estava se vingando de todas as vezes em que fora ignorado.

Repassou novamente a canção que tocava na primeira vez que seus lábios se tocaram e depois mais zil outras que seriam capazes de substituir, dignamente, a trilha sonora de Perfume de Mulher – aliás, lembrava-se também do aroma doce que a pele d’Ela exalava. Se não estivesse em terra firme, juraria que estivera com uma sereia e possivelmente nadaria de bom grado em direção ao trono de Netuno. Fazia tempo que seus dias não tinham um fundo musical tão belo.

Não conseguiu se conter por mais nenhum segundo, ligou. Três toques (que para Ele pareceram 3.000.000.000.000.000) foram o suficiente para aquela voz suave atender também apresentando um leve tom de ansiedade e euforia, bastou um acorde daquela doce melodia para que todas as preocupações sumissem – em pouco tempo estavam rindo-se ao telefone e marcando, ansiosamente, o próximo encontro.

Todas as outras mulheres do mundo, mesmo as que lhe assediavam, pareciam nada naquele momento: Seus pensamentos voltavam-se apenas para a tarefa hercúlea de fazer com que o segundo encontro fosse tão ideal quanto o primeiro.

Sentou-se defronte à sua prancheta mental e começou a traçar os planos para o dia vindouro, teria todo o tempo do mundo para isso já que o dia de hoje arrastaria-se por uma eternidade. De repente, um estalo. Fora o Destino e a Naturalidade que orquestraram o primeiro instante de romance, portanto não mais faria planos. Optou por escrever sobre as sensações que o dia maravilhoso que vivenciara havia deixado em si.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Conversa Franca


Eu te amo porque te amo. Alguns, mais românticos que eu, diriam várias coisas a partir disso, como "não precisas ser amante", mas eu francamente discordo. Precisa ser amante sim, e das boas! Não me leve a mal, mas convenhamos que tem certas coisas que são insubstituíveis. Se a paixão é a propulsora do amor, o gozo é seu lubrificante.

Não faz essa cara, Quando você me conheceu sabia desse meu jeito bruto de ver e falar das coisas. No mais, eu acredito em amor sadio. Nada desse papo de ficar sofrendo por quem se ama numa relação em que apenas se dá e nada se recebe. Fala sério, sem condições.

Pronto, lá vem você chorar e me chamar de grosso. Isso tem outro nome: sincero. Se eu soubesse que iria aturar isso toda vez que fosse falar aberto contigo, juro que teria dado em cima da Ju ao invés de em você. Agora é tarde, apaixonei.

Ah lá, vai começar a dar vexame. Depois eu escondo as coisas e você reclama - como daquela vez em que fui ao puteiro comemorar os dezoito anos daquele meu camarada. É claro que não comi ninguém, sou um homem compremetido, ora. Muito embora na época você estivesse merecendo um chifre por me negar fogo durante um mês. Pô, só porque eu propus aquele lance contigo e com a Ju...

Isso, sai batendo porta, me deixa falando sozinho. Depois fica no MSN falando com as amigas que eu sou muito fechado, sempre pareço estar escondendo algo. Pois bem, eu estava sim, 'tá me ouvindo?! E o porquê é simples: Você não sabe lidar com a verdade.

Digo mais: Hoje aquele amigo meu faz vinte e um anos e vou sair com os rapazes. Fica revoltada não, lembre-se do começo desse papo todo. Aquele "eu te amo porque te amo" e tal. Ele foi tão sincero quanto tudo o mais que eu te disse hoje, só não veio confeitado. Beijo, não chego tarde.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Senilidade Perdida


Confesso que sinto-me perdido neste mundo, não pelas mudanças radicais, típicas e fúteis dos jovens, mas por considerar as mudanças dos jovens como radicais, típicas e fúteis.

Sim, admito, sinto que nasci no tempo errado. Sou um velho dentro de uma multidão de "aborrescentes" que discutem as políticas sociais de suas agitadas vidas como se fossem realmente algo digno de uma pauta do Conselho de Segurança da ONU. Se ao menos os jovens de hoje gastassem tanta energia, eloquência e paixão com algo realmente útil...

Ah! A paixão! Essa força motriz que impulsiona a juventude para lugares apertados, com música de qualidade questionável (a moral, então, nem se discute) e nos quais o capitalismo especulativo mostra toda sua potência na forma de drinks mais caros que garrafas!

Francamente, já deu, não? Onde estão os bons e velhos botecos cujos quais a juventude costumava se reunir, bares nos quais os garçons são conhecidos pelo nome, podia-se conversar sem disputar com caixas de som tendo-se, assim, a chance de realmente conhecer ou desgustar a companhia de alguém.

Eu mesmo respondo: Estão de portas fechadas ou recheados de velhos bem mais velhos que eu, mas os quais não se esqueceram dos pequenos prazeres de suas juventudes como uma mesa de sinuca estrategicamente torta, uma cerveja realmente gelada e barata, aipim com carne seca, linguiça frita com cebola e ovo colorido.

Bons tempos que não voltam mais. Ria-se por dentro do discurso inflamado dos "comunistas de bar" que logo abafavam suas vozes ao avistarem a rádio-patrulha dobrando a esquina.

Época de ouro, na qual verdadeiras poesias eram espalhadas pelo rádio, todo bairro tinha um campinho para a pelada da turma, fumar era "cool", AIDS era coisa de bicha, maconha era coisa de hippie, trânsito era coisa de São Paulo, depressão era coisa de asilo.

É... bons tempos.