quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Carta da Trincheira

Tenho pouco papel, está chovendo. A água bate na altura do meu tornozelo e não há nada que eu possua que não esteja encharcado de lama.

Lugar específico para a urina ou fezes já não há mais. Tento encontrar algum conforto embaixo dessa lona improvisada, mas em vão. Me contorço sobre minha mochila para redigir essa carta.

Ao contrário do que o romantismo da guerra nos faz acreditar, essa não é uma carta de amor. É uma carta de horror.

"Imagino", você deve estar pensando. Se você acha que ver o corpo de um outro ser humano cair após o seu disparo, se esquivar entre projeteis que zunem à sua volta e se surpreender com explosões é o horror, você claramente nunca pisou num campo de batalha. Não posso dizer que não te invejo.

O horror da guerra nada tem a ver com batalha. O horror da guerra vem da espera. Do silêncio entre um inferno e outro. Vem da capacidade de ouvir centenas de corações batendo paranoica e aceleradamente. De ouvir o barulho da chuva caindo e notar que a trincheira enche de água.

Vem da expectativa brutal e silenciosa. Quando o combate irrompe, tudo está ocorrendo como deveria ocorrer. Tudo está dentro do protocolo, do treinamento, do procedimento.

Mas ninguém nos ensinou a esperar.

Nada nos foi dito sobre sentir seu pé se deteriorar dentro do seu coturno - razão de tantas amputações. Ou de arrancar meias encharcadas e toda a pele do pé ser flagelada e você desejar uma amputação. Não há doutrina para os suprimentos que rareiam dia a dia, os companheiros que enlouquecem, os médicos que perceptivelmente desistiram.

Quando a fúria do embate está sobre nós, tudo é brando. Não há tempo de pensar ou sentir. O instinto e o reflexo tomam conta. As coisas acontecem. E tudo é dentro do roteiro esperado em que você vive uma glória ou tem uma morte rápida.

O problema é quando as coisas não acontecem. O problema é quando não sabemos se não acontecerão ou se estão prestes a acontecer. A ansiedade, a expectativa, elas nos matam pouco a pouco.

Ficar tanto tempo entrincheirado sem combate deveria ser considerado crime de guerra.

Um comentário:

  1. Como sempre, um belo text que nos transporta para a cena descrita e nos faz expectadores dos horrores vividos pelo narrador-personagem. Simplesmente, comovente!

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